Passos, carambola, música e Adélia...

Essa tarefa me inquietou de infinitas formas. A maior delas, foi pensar na narrativa que eu escolheria mostrar. O que eu gostaria de contar? Eu não sei. Não sei até agora depois de vídeo pronto. Eu o fiz e refiz e ainda não sei. Filmei meus passos e caminhos. Olhei pra coisas que não olharia. Mexi em computador com coisa que nunca abro. Sem saber o que contar, fui visitar outros espaços. Moro num condomínio fechado e nunca, realmente nunca, desço as escadas pra visitar esse balanço ou pegar carambola da árvore. É condomínio fechado de dentro. Mas fui lá, contar de um lugar que ninguém vai e é tão pertinho. Contar de pé carregado de carambola que ninguém pega e é de todo mundo... ou tem dono? Deve ter.
A carambola não pego não, mas quando não sei o que contar, costumo pegar emprestado narrativas dos outros pra mim. Adélia Prado é poetiza que me acompanha, sem que ela saiba. Todo dia ela fica ao lado da minha cama e antes de dormir, me diz uma poesia. Adélia escreve sem grades e, diferente da carambola com dono e sem dono, sinto que as palavras dela podem ser usadas. Por isso é que guardei uma dessas poesias pra narrativa desconexa que escolhi contar hoje, que dispensa apresentações prévias e fala de tudo: de Deus e de vida; de culpa e culpa de sentir culpa; de marimbondo e choro de alegria e tristeza. Fala de Adélia e fala de mim.

"A Face de Deus é Vespas

Queremos ser felizes.

Felizes como os flagelados da cheia,

que perderam tudo

e dizem-se uns aos outros nos alojamentos:

'Graças a Deus, podia ser pior!'

Ó Deus, podemos gemer sem culpa?

Desde toda a vida a tristeza me acena,

o pecado contra Vosso Espírito

que é espírito de alegria e coragem.

Acho bela a vida e choro

porque a vida é triste,

incruenta paixão servida de seringas,

comprimidos minúsculos e dietas.

Eu não sei quem sou.

Sem me sentir banida experimento degredo.

Mas não recuso os marimbondos armando suas caixas

porque são alegres como posso ser,

são dádivas,

mistérios cuja resposta agora é só uma luz,

a pacífica luz das coisas instintivas."