sobre esta mania de insistir em viver, bem.

era manhã de quinta.
um ventinho frio entrou pela janela, bailou a cortina, tapeou meu rosto.
abri os olhos, e ao insinuar levantar-me, percebi o cansaço sussurrar.
experienciei o corpo descansado, e quando senti pensar, percebi que estava ainda em prosa desde a noite anterior, ou desde horas anteriores.
a mesma sensação que eu tinha quando acordava no sítio que meu bisavô morava, e ao ouvir ele e minha avó conversando sobre tantos outros tempos, sentia como se já estivessem ali por horas, como se já tivessem visitado vários outros universos pela fala, sem deslizar os pés do lugar que estavam.
o seco que havia cá dentro, lá fora, molhado.
calmamente chovia. outra contradição, já que lá dentro, tudo gritava, alto que só.
frio fora, borbulhando dentro.
eu dentro, querendo estar fora.
sentindo saudade de habitar o próprio corpo, ao passo que desejando deixa-lo de lado e dar uma voejada por aí, como uma fita fina sendo levada pelo vento bem levezinho.
um nó causado pela sensação de estar perdida, ao passo que cheia de caminhos traçados para o dia.

me movimentei, e inclinei meu corpo pra vida.
ao sair, senti o sol. foi iluminando uns espaços que ainda estavam escuros lá dentro.
fui sentindo florescer, pouco a pouco.
ouvi os pássaros, e senti que podia ouvir o mundo. brotou esperança pra poder ouvir algo além do que só o de dentro.
uma folha caiu na cabeça, presente do universo.
entendi que poderia me lembrar sobre trocar as folhas, ou caso ainda não fosse o momento, trocá-las de cor.
só não pode ser continuar sendo o que tem sido.

caminhei,
sorri,
ouvi,
toquei e fui tocada.
eu precisando tanto receber, consegui contribuir.
deixei meus transtornos no bolso, pra me inundar no do outro, com ele, juntos.

sentada naquela cadeira, enquanto os psiquiatras discutiam os casos, encostei a cabeça na parede e quis mergulhar nela.
se nem eu mesma estava em equilíbrio com a realidade, como poderia ajudar os ‘usuários’ a estarem?
rapidamente questionei que meu pensamento me revelava que eu acreditava ser meu papel reconduzi-los a uma harmonia com o real. pesei-me pelo equívoco. mas sussurrei... “você está aprendendo, faz parte do caminho estar caminhando...”.
indo embora, recebi um abraço, “até mais minha querida! receberei alta amanhã de manhã! até mais!”.
ambiguidade novamente... felicidade ao vê-la ir, sentimento de que poderia ter feito mais, ou ter feito, algo.
ê, esta vida de pessoas e passagens.

saí e quis sentir os passos.
uma forma de possuir o tempo do agora.
possuir o espaço.
me possuir.

quis sentir o dia ir embora.
quis sentir o corpo receber o alimento.
quis sentir a gota quente do banho na mão.
quis sentir o tecido na pele.
quis sentir a fragilidade, a força, a intensidade e a calmaria, a vida e o quase.
quis sentir o lá fora, aqui dentro.
quis sentir poder ter,
controle.

certa vez olhei pra queda da água de uma cachoeira e pensei ser leve,
quando entrei, mal conseguia respirar.
era tanta força!
(digitei pensando que poderia estar me referindo a mim mesma em alguma situação)
às vezes acontece conosco em situações do pensamento, ou dos sentimentos, a mesma coisa.
quando se está neles, ou embaixo deles, é tão forte.
e, olhando de fora, você sabe que consegue resistir.

me dirigi ao vidro da porta da varandinha que refletia o pôr-do-sol amarelo-laranjado-roseado,
vi meu rosto colorir juntamente com todo o pouquinho de universo que eu conseguia ver.
‘calorou’, clareou e coloriu tudo cá dentro.
percebi que era preciso eu me conectar comigo mesma, e restabelecer meu lugar de mim em mim.
um lampejo de luz do interior insistiu em dizer:
“quero mudar você.
e quando digo isso,
é plantar uma muda de flor risonha
pra florescer aí dentro.
nesta terra fértil que habita o ser de quem sonha.
é plantar uma muda de nuvem
pra você acalentar o fluxo das suas transições.
é plantar uma muda de calmaria,
onde há mar feroz.
é plantar uma muda de tu, em tu.
vai passar. vá plantar.”

e pude, mais tarde, adormecer, em paz.
pra noutro dia abrir os olhos, e reabitar, ressigni-ficar, reviver o viver. de novo.


Lorranie Suzan

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