A mochila bege

        Quase todo dia leio um pouco. Pela função que me foi dada, sendo eu mochila escolhida para guardar e carregar coisas de escola-universidade, posso ler todo dia. Tem mochila que carrega roupa, tênis. Outras guardam comida. Outras ainda, mamadeira de criança pequena. Penso eu que sou abençoada, porque posso ler quase todo dia. Tem mochila, é verdade (juro pelos meus zíperes), que passa a vida a morrer aos poucos (ou viver?) de tédio. Umas, já me disseram, sofrem de carregar roupa molhada de clube, coisa que nem imagino de tanta ruindade. Tem mochila também que viaja muito. Dessas eu tenho um pouco de inveja (se eu pudesse ter inveja), mas essa vida não foi a que o destino me deu.
            Gosto muito de pensar que sofro pouco porque guardo papeis, livros e canetas, e vez ou outra, uma blusa de frio. Mesmo assim, já não sou tão inteira. Acompanho muitas andanças de minha dona (dona?) – que não teve a mínima sensibilidade de me batizar. Sou Mochila e ponto final. Eu percebo que ela nunca me enfeita. É para manter as coisas simples. Por isso que nunca tive chaveiro, como o estojo que fica guardado em mim, e nunca pude, como as canetas, grifar as frases que mais me agradam ou algumas para repetir mais tarde (feito gente culta). É por isso que tenho que guardar as coisas na memória do meu tecido interno. Meus bolsos servem mesmo é para isso: guardar memória. Memória simples e sem adorno. Os adornos, Alice é quem coloca mais tarde, como quer.
            De alguma maneira aconteceu que pertenço à Alice. Tem o seu nome escrito na etiqueta fixada em mim. Escutei-o pela primeira vez quando a mãe me encontrou no fundo da loja, bege que sou (pelo que me contaram) e exclamou (bem exclamada) “A cara da Alice”. Se tenho a cara da Alice ou não, nunca pude ver. Logo nos primórdios de nosso relacionamento, entendi que os livros eram a companhia preferida de Alice. Deve ser bem por isso que devo ter começado a falar de minhas leituras. Só poderia ser assim, tendo Alice como dona (dona?). Vou contar aqui, a história que guardei de Alice durante todas essas 8 (oito) agendas que guardei. Já não consigo separar direitinho qual agenda é qual, assim as histórias podem ser que fiquem bem misturadinhas. Isso porque sou mochila de poucos compartimentos, o que deixa tudo entrelaçado!
            É que tenho sentido, cada vez mais, que meu tempo de vida ou, pelo menos, de companheira de Alice, acaba em breve... Alice teve oportunidades de me trocar, inclusive já o fez algumas vezes, mas se voltou arrependida quando, eu imagino, ninguém mais lia seus livros como eu. Gosto de pensar que somos companheiras, por isso dói (na dor que não sinto) quando ela me deixa em casa. Penso que ela precisa ter seu espaço e me sinto agradecida por deixar em mim alguma coisa para ler. Alice é o ser humano de quem eu mais gosto! Eu não tenho muito contato com seres humanos adultos ou crianças e só me resta conhecer os que Alice conhece.
            Mas comecei falando que todo dia leio um pouco. Te conto que é um pouco, porque nem sempre tenho a sorte de ter guardado em mim livros bons. Gosto mais dos livros que são bonitos e posso ver os desenhos. Vez em quando também, ela (a dona) guarda em mim livros com demasiadas (palavra que aprendi em um desses livros) páginas e não tenho tempo de finalizar. Nessas vezes, fiz promessa comigo mesma de inventar um final, para nunca morrer de morte-frustrada (outra palavra aprendida) de quem não finaliza coisas.
            Leio um pouco só, também porque passo grande tempo andando. Como fico de costas, quase nunca enxergo com os olhos (não tenho olhos) o rosto das pessoas. Isso pouco importa, eu ouço com meus ouvidos (não tenho ouvidos) as vozes, os sussurros, os risos. Sei direitinho de quem minha dona gosta e não gosta. Eu também posso reconhecer os toques de abraços que me apertam e sinto o cheiro com o nariz (não tenho nariz) de perfume no pulso.
            Quase sempre eu a acompanho no caminho da faculdade. Tem dia que ela me enche de coisa e livro (são os melhores dias) e tem dia que ela me esquece em casa, quando fico esvaziada e me resta tentar finalizar com fins bonitos minhas histórias, para não morrer de morte-frustrada ou morte-abandonada. Mas isso agora. Antes a gente ia para a escola, quando eu ainda era jovem e quando Alice guardava em mim os melhores livros que alguém poderia ler.
            Ela gostava de me levar, quando podia, para casa de sua vó. Alice a adora! Eu também, porque a vó sempre emprestava livros e era quando podia ouvir histórias-bem-contadas de gente-bem-vivida. Eu escutava (escutava?) tudo para um dia contar para Alice, quando ela se esquecesse, esquecida que é. Ser humano esquece fácil, mas mochila não, mochila foi feita para guardar. Lá na vó tem cheiro de café e rosca (que nunca comi). A primeira coisa que Alice fazia quando chegava era acariciar a cachorra Menina (Menina-de-poucos-amigos) que quase sempre batia em mim seu rabo peludo e enorme. Depois me colocava na cadeira, de onde pacientemente eu escutava a conversa afetuosa de vó e neta.
            A casa tinha muitas plantas, que sempre levávamos embora na despedida do encontro, me deixando com o cheiro da memória de manjericão-pimenta-hortelã-salsinha. A vó se mudou, o que partiu o coração de Alice. Fico até vermelha (o que não é possível, sendo eu bege) de contar da minha alegria, quando Alice, na despedida, me agarrou (como amiga que somos) e derramou uma lagrimazinha comigo em seu ombro! Fomos embora devagar nesse dia... Alice triste-de-partir-o-coração e eu, fingida de tristeza e esvaziada de livro e cheiro. Agora faz tempo que não encontramos a vó. Depois dessa despedida é que entendi. Cabe em mim guardar coisa difícil de ser pesada (de pesagem de quilograma). As plantas e os cheiros, os caminhos e a cachorra Menina-de-poucos-amigos, tudo isso eu também guardava. Tudo isso eu ainda guardo, agora no peso da memória de acontecimento passado e de vontade de encontro futuro.
            A primeira casa em que morei com Alice era a da mãe. A mãe é mulher carregada (e nem é mochila). Carregada de tudo. Era comum que descarregasse muitas coisas em Alice e suas irmãs. Penso aqui com meus zíperes que é por isso que Alice gostava de ler (mas isso é assunto para outro conto). Um dia Alice se cansou (todo dia se cansava) e pensou que seria melhor morar com o pai. O pai não morava com a mãe.
            Foi assim que conheci o pai de Alice, homem de livros numéricos e biológicos. Passamos algum tempo na casa do pai – que Alice nunca chamou de sua – depois de longuíssima viagem em que fui apertadíssima com outras malas e mochilas carregadoras de roupa (outro assunto para outro conto). Ficamos lá pelo que considero tempo demais, apesar de ter sido pouco. O pai se achava dono e agia como dono. Alice não gosta de quem se acha dono. Foi por isso que fomos embora... mais especificamente, foi por isso que não voltamos. Conhecendo Alice pelo cheiro que conheço, posso afirmar que ela sente muito a falta dele e uma parte sua sempre vai querer que tivéssemos voltado. Para o bem ou para o mal, o pai ensinou muita coisa para a gente. Uma delas é que a loucura pode ter várias formas e ser bem fingida, outra coisa é que o poder é perigoso.
            Margarida e Florência são as duas irmãs de Alice. Para elas, Alice queria fazer de tudo, queria até guarda-las dentro de mim se coubesse! Eu juro (se pudesse jurar) que tentei ao máximo me esticar para que coubesse. Não cabe. Alice sofre de não conseguir guarda-las protegidas, eu sei, mas tem aprendido que nem tudo cabe nela, assim como não cabe em mim.
            Alice tem um namorado. Eu desconfio que seja o ser humano de quem ela mais gosta no mundo e sei que ela morreu de saudades quando decidiu entrar no ônibus fedido e apertado, rumo a casa do pai. O namorado em nada contribui para minha vida (vida?). Alice nunca me leva para seus passeios com ele. No tempo que passamos juntos faço a maior cara (não tenho cara) de fingida do mundo, porque Alice jamais pode saber do meu desgosto nesse menino. Fiz questão de esquecer seu nome. (Roberto). Alice fica muito feliz com esses encontros. Muito feliz. Ela arruma seu quarto para o receber e guarda muita coisa em mim de suas desarrumações, o que me deixaria terrivelmente de mau-humor, se eu pudesse ficar de mau-humor. Falando assim, fica fácil parecer que tenho ciúmes, mas garanto que não é isso. Mochila, vocês sabem, tem vida pouca e precisa viver intensamente enquanto não é descartada de vez. Foi assim que me agarrei tanto a Alice, por precisar de amor (e quem não precisa?).
            Na minha pouca e muita experiência de Mochila da Alice, pude constatar a necessidade de amor que os seres humanos têm. Até mesmo os seres humanos de quem Alice não gosta, que são, aliás, os que mais gostariam de ter seu amor... Gosto de Alice, mas às vezes penso que do tamanho de sua amabilidade é também o tamanho do seu jeito bobo (dá até raiva, se eu pudesse sentir raiva).  Eu – que não tenho olhos, ouvidos e nariz, mãos e pés – percebo um monte de coisa e Alice não, coisa que não compreendo. Eu não compreendo muita coisa de Alice, mas ela não precisa de minha compreensão. Só precisa que eu guarde seus pertences e memórias. Esse é o conforto que posso lhe oferecer.
            Alice ama muito sua faculdade. Lá eu vou de segunda a sexta-feira, os dias que aprendi no calendário das agendas que ela guarda em mim. Agenda é que é coisa triste, trocada todo ano. Nem me apego muito, como eu disse, para não correr o risco de morrer de morte-frustrada ou morte-de-troca-antecipada. Mas eu vinha falando de faculdade. Alice ama sua faculdade. Na faculdade Alice encontrou muita gente, de todo tipo! Tem gente que ela chama de professor de um jeito parecido de vontade de ser professor. Eu sei dos jeitos que Alice fala as coisas. Tem gente que ela chama de amigos. Tem gente que ela cumprimenta todo dia de manhã, e até parece que ela é feliz, mas nem sempre é. Tem gente que a Alice gosta de abraçar. Outras ela pega na mão (eu acho). Outras, só conversa. Alice conversa muito lá e também assiste a muitas aulas. Por consequência, eu também. Tive pensando esses dias, cá com meus zíperes, e considero que eu também estou me formando. Alice está se formando.
            Alice não encontrou só gente na faculdade. Ela encontrou sonhos, artes, caminhos possíveis, novos textos e novos livros. Eu disse que na escola eu e ela líamos os melhores livros que mochila e gente poderiam ler, mas é porque não tinha conhecido os novos livros e textos e artes que a faculdade oferecia para guardar em mim. Aprendi muitas palavras novas, bonitas e que ouço Alice falar o tempo todo. Alice também gosta de escolher palavras boas. Assim como gente, tem palavra boa e ruim.
            Alice também se encontrou e se encantou com a Arte. Não pude evitar também o meu encontro-encanto com a arte, outra sorte que gosto de pensar ter na minha vida de Mochila bege. Esse encontro foi acontecendo devagarinho, no tempo que Alice dava conta de carregar. Eu – mochila bege que queria ter mais cor – queria mais, muita mais de arte, mas tive que esperar o tempo de Alice. É que, como eu disse, Alice tem um jeito bobo e devagar, que não compreendo... A arte de dose em dose, gotinha a gotinha, deixou Alice bem mudada. Fiquei apavorada (se eu pudesse ficar apavorada) de ser trocada por mochila mais artística. Não fui. Arte não era isso para Alice. Ela trocou outras coisas que não eram mochila-caderno-parede- cama. Trocou pensamentos-palavras-livros-amigos por coisa mais bonita, mais artística, mais inquieta e mais pacifica. Sendo mochila de pouco compartimento, entendo que as coisas podem existir juntas e ao mesmo tempo, como ser inquieto e pacífico. Isso é coisa que tento ensinar para Alice (mostrando, porque não falo).

            Esses encontros todos (de mãe-vó-pai-irmãs-amigos-professores-artes-livros-historias-abraços...) fizeram de Alice uma nova menina, nem tão menina assim. E me fizeram nova mochila. Nova? Velha, eu quis dizer. Não sendo uma Mochila qualquer, mas a Mochila bege e abençoada de Alice, vivi 8 (oito) agendas até agora. Meu pano interno tem um grande rasgo, que foi crescendo aos poucos com o peso das memórias acumuladas. Alice já tentou me costurar, a vó também, mas o remendo dura pouco. O rasgo da memória é marca de vida irremendável. O que ele pode fazer é se deixar crescer. 

Comentários

  1. Angelaaaaaaaaa! Eu amei tantooo esse texto. Mesmo sem ter tanta intimidade com vc, me senti tão próxima enquanti lia. Que delicia. Vc escreve muito bem e é muito fofinha. Tenho mto carinho por vc, s2 beijoca

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    1. ô Paula, já te disse, né? Mas vc é muito linda, obrigada <3 <3 <3

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